terça-feira, 30 de agosto de 2011

"Amar a Deus? Às vezes eu o odeio!" – R. C. Sproul


Romanos 3.18 termina com a acusação formal contra a humanidade decaída de que "não há temor de Deus diante de seus olhos". Talvez esse seja o efeito mais devastador do pecado original. Nós, que temos sido criados na imagem de Deus e que fomos feitos para adorar e reverenciar nosso Criador, já perdemos a capacidade de reverência santa diante dele. Nada é mais alheio a nosso estado decaído do que adoração autêntica. Isso não quer dizer que paramos de cultuar completamente. Antes significa que nos tornamos idólatras, transferindo o culto de Deus a algo na ordem criada. Paulo diz:

A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Romanos 1.18-25.

Essa seção de Romanos descreve a prática universal de idolatria. O pano de fundo para a acusação é que Deus se revela claramente na natureza, com o resultado que todo ser humano sabe que há um Deus. Mas a resposta universal a essa revelação é suprimi-la e trocar essa verdade manifesta por uma mentira. Nós trocamos a glória de Deus pela glória de coisas pertencentes à criatura. A própria essência da idolatria é erigir um altar a um substituto para Deus. O temor de Deus ao qual Paulo se refere não é o medo ou pavor servil que se tem de um inimigo, mas o respeito que enche o coração com reverência e inclina a alma à adoração. Pecadores não adoram Deus por natureza própria. Nós somos, por natureza, filhos da ira, pois levamos em nossos corações uma inimizade fundamental para com Deus.

Estar no estado de pecado original é estar no estado que a Escritura chama de "na carne". Isto não se refere primariamente a coisas físicas, mas a uma condição de corrupção moral. Na carne não somos capazes de agradar a Deus. De fato, falta-nos o desejo de agradá-lo. Somos desafeiçoados e alienados de Deus.

Caso perguntássemos a descrentes se eles odeiam a Deus, provavelmente negariam isso categoricamente. Contudo a Bíblia torna claro que habita nos corações e nas almas de homens não-regenerados um profundo ódio de Deus. Amor por Deus não é natural para nós. Mesmo no estado redimido nossas almas se esfriam e temos sentimentos de indiferença para com ele. Quando oramos, nossas mentes vagueiam e cedemos a devaneios. Em meio ao culto em conjunto, ficamos entediados e nos encontramos dando olhadas disfarçadas em nossos relógios. Como é diferente isso de nosso comportamento quando estamos na companhia daqueles a quem muito amamos.

Nossa falta de amor natural por Deus é confirmada por nossa falta natural de desejo dele. Quando jovem me foi exigido decorar O Breve Catecismo de Westminster. Para mim foi uma tarefa pesada. A primeira pergunta do catecismo é "Qual é o fim principal do homem?" A resposta diz: "O fim principal do homem é glorificar a Deus e gozá-lo para sempre". Para mim isso não fazia muito sentido. Eu entendia que há alguma ligação entre glorificar a Deus e obedecer a Deus. O que deixei de captar foi o elo entre tudo isso e "apreciar" a Deus. Se o fim principal ou propósito de minha vida era apreciar Deus, então estava deixando escapar o objetivo todo de minha existência. Eu coloquei de lado isso como sendo linguagem religiosa anti¬quada que não tinha nenhuma relevância à minha vida diária. Certamente não estava inclinado a procurar minha alegria em Deus.

Mais tarde entendi meus sentimentos quando lia a resposta de Lutero à pergunta: "Você ama a Deus?" Lutero respondeu (antes de sua conversão), "Amar a Deus? Às vezes eu o odeio!" É raro entre os homens que alguém admita isso. Até mesmo a resposta franca de Lutero não chegou a ser totalmente sincera. Tivesse ele falado toda a verdade, teria dito que ele odiava a Deus o tempo todo.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Deus espera com a mão estendida? – João Calvino (1509-1564)


Em Jeremias (32:39-40) Deus diz: "Dar-lhes-ei um só coração e um só caminho, para que me temam todos os dias"; "Porei o meu temor no seu coração, para que nunca se apartem de mim." E logo no princípio da profecia de Ezequiel (11:19): "Dar-lhes-ei um só coração, espírito novo porei dentro deles; tirarei da sua carne o coração de pedra e lhes darei coração de carne." Deus considera nossa conversão como criação de um novo espírito e um novo coração. Como então poderia Ele reivindicar mais claramente para Si mesmo tudo o que é bom e reto na vontade do homem?

Com isso estão de acordo as orações dos santos. Salomão disse: "O Senhor nosso Deus seja conosco... a fim de que a si incline os nossos corações para andarmos em todos os seus caminhos e guardarmos os seus mandamentos."(1 Rs. 8:57-58). E no Salmo 119 achamos a oração: "Inclina o meu coração a teus testemunhos, e não à cobiça" (v. 36). Davi pede a Deus que crie nele um coração puro, e renove nele um espírito reto, reconhecendo que seu coração está cheio de impureza e seu espírito de perversidade, e reconhecendo que a pureza que pede em oração é criação de Deus.

O testemunho de Cristo a respeito deste ponto fica claro para todos aqueles que não fecham seus olhos deliberadamente: "Eu sou a videira; vós os ramos; meu Pai é o agricultor. Como não pode o ramo produzir fruto de si mesmo, se não permanecer na videira; assim nem vós o podeis dar, se não permanecerdes em mim." (Jo. 15:1, 4-5). Se não podemos produzir mais frutos por nós mesmos do que um ramo de videira arrancado do seu tronco e privado de seiva, então não precisamos ir mais longe em busca da nossa capacidade natural para o bem. Igualmente decisiva é a conclusão de Cristo: "Sem mim nada podeis fazer."

O apóstolo Paulo, numa passagem que já citei, atribui a Deus todas as boas obras: "porque Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segundo a sua boa vontade" (Fil. 2:13). A primeira parte de uma boa obra é a vontade de praticá-la; a segunda é um esforço eficaz para realizá-la; o autor de ambas é Deus. Portanto, furtamos a

Deus tudo quanto arrogamos a nós mesmos, seja com respeito ao querer ou ao fazer. Deus tanto inicia como completa. Vem da parte dEle que nossa vontade conceba o amor daquilo que é certo, seja inclinada a desejá-lo, e seja despertada para procurá-lo; que nossa escolha, nosso desejo e nosso esforço não fracassem, mas sim sejam realizados; que continuemos nas boas obras e perseveremos nelas até o fim.

Deus move a vontade do homem na conversão, de modo eficaz, não deixando à escolha do pecador se ele obedecerá ou desobedecerá. Devemos rejeitar, portanto, uma declaração de Crisóstomo, freqüentemente citada:"Aquele que é atraído por Deus é atraído voluntariamente", pela qual subentende que Deus espera com a mão estendida para ver se queremos aceitar Sua ajuda, ou não. O apóstolo não nos diz que a graça de uma vontade renovada nos é oferecida na condição de a aceitarmos, mas que a própria vontade é gerada por Deus em nós; ou seja, que o Senhor pelo Seu Espírito dirige, molda, regula nosso coração e reina nele como no Seu próprio reino.

Teria ficado igualmente certo que a perseverança deva ser considerada o dom gratuito de Deus, se não fosse a prevalência do erro grave de que a perseverança é a recompensa do mérito humano, e é dada àqueles que foram devidamente gratos pela graça recebida. Mas visto que este erro brotou de um outro que já refutei, a saber, que depende do homem aceitar ou rejeitar a graça que Deus oferece, o erro originador tendo sido refutado, o segundo cai por terra.

E agora, escutemos Agostinho. Suas palavras mostrarão que não somos, conforme alegam nossos adversários, contraditos pela voz unânime dos pais antigos. Farei um esboço breve da opinião de Agostinho, usando suas próprias palavras.

"Foi concedido a Adão ficar firme se fosse da sua vontade assim fazer; a nós é dado querer e a vencer o mal pela vontade. Ele teria o poder, se apenas tivesse a vontade; Deus nos dá tanto a vontade quanto o poder. Sua liberdade era esta: ser capaz de não pecar; a nossa é maior, a saber: não ser capaz de pecar (1 Jo. 3:9). Se naquela fraqueza, em que o poder de Deus se aperfeiçoa, os santos

fossem deixados a exercerem sua própria vontade, e se Deus não operasse neles para querer e para realizar, a vontade deles falharia devido à própria fraqueza em meio às suas muitas tentações, e não seriam capazes de perseverar. Deus atrai os homens pela própria vontade deles, mas Ele mesmo opera naquelas vontades."

Noutro lugar, Agostinho diz que a graça não priva o homem da sua vontade, e sim transforma-a de uma má vontade para uma boa vontade, e depois passa a assisti-la; com isso quer dizer que o homem não é forçado, por assim dizer, por algum impulso externo, e sim está tão afetado interiormente que obedece de coração. Diz também, numa das suas cartas: "Sabemos que a graça de Deus não é dada a todos os homens; e que, onde é dada, não o é na base dos méritos das obras do homem nem da vontade do homem, mas pela livre graça; e sabemos que onde não é dada, é retida pelo justo julgamento de Deus." E em certo lugar resume admiravelmente a questão inteira desta forma: "Humana voluntas non libertate gratiam, sed gratia consequitur libertatem, isto é, a vontade humana não obtém a graça mediante a liberdade, e sim a liberdade mediante a graça."

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Catecismo Maior de Lutero: o 1º mandamento

Primeiro Mandamento
NÃO TERÁS OUTROS DEUSES 


Isto é: considerarás somente a mim como teu Deus. Que significa isso e como se deve entendê-lo? Que significa ter um Deus, ou, que é Deus? Resposta: Deus designa aquilo de que se deve esperar todo o bem e em que devemos refugiar-nos em toda apertura. Portanto, ter um Deus outra coisa não é senão confiar e crer nele de todo coração. Repetidas vezes já disse que apenas o confiar e crer de coração faz tanto Deus como ídolo. Se é verdadeira a fé e a confiança, verdadeiro também é o teu Deus. Inversamente, onde a confiança é falsa e errônea, aí também não está o Deus verdadeiro. Fé e Deus não se podem divorciar. Aquilo, pois, a que prendes o coração e te confias, isso, digo, é propriamente o teu Deus.
Por isso, o sentido desse mandamento é exigir fé genuína e confiança de coração, que vai certeiramente ao verdadeiro e único Deus e se apega exclusivamente a ele. Isso quer dizer tanto como: toma cuidado no sentido de, apenas, eu ser o teu Deus e de forma nenhuma procures outro. Isto é: o que te falta em matéria de coisas boas, espera-o de mim e procura junto a mim, e se sofres desdita e angústia, arrasta-te para junto de mim e apega-te comigo. EU, eu quero dar-te o suficiente e livrar-te de todo aperto. Tão-só não prendas a nenhum outro o coração, nem o deixes em outro descansar.
Devo explanar isso algo mais claramente, a fim de que se entenda e perceba a coisa à luz de exemplos cotidianos de comportamento oposto. Há muito quem pensa que tem Deus e o bastante de tudo quando possui dinheiro e bens. Tão inabalável e confiadamente deles se fia e jacta que ninguém lhe vale coisa nenhuma. Eis que tal homem também tem um deus, Mamon, de nome, isto é, dinheiro e bens, em que põe o coração todo. Esse, aliás, é o ídolo mais comum na terra. Quem possui dinheiro e bens sabe-se em segurança, e é alegre e destemido como se estivesse assentado no meio do paraíso. Por outro lado, quem nada possui, duvida e desespera, como se de nenhum Deus tivesse notícia. Pois a gente vai encontrar bem poucas pessoas que estejam de bom ânimo e não se lastimem nem se queixem quando não têm Mamon. Isto se gruda e adere à natureza até a sepultura.
Assim, também, aquele que se vangloria de grande erudição, inteligência, poder, apreço, parentela e honra, e nisso põe sua confiança: esse também tem um deus; não, porém, o Deus verdadeiro e único. Isso, por sua vez, o percebes, quando se torna aparente, quão presunçoso, seguro e orgulhoso se é em razão desses bens, e quão pusilânime quando inexistem ou deles se é privado. Repito, por isso, que a explicação correta desse ponto é: ter um Deus significa ter algo em que o coração confia inteiramente.
Considera, outrossim, o que praticamos e fizemos até agora na cegueira sob o papado. Se alguém estava com dor de dente, jejuava em honra de Santa Apolônia; se temia incêndio, fazia de São Lourenço seu padroeiro; se pestilência, fazia votos a São Sebastião ou São Roque, e número incontável de semelhantes abominações, cada qual escolhendo o seu santo, adorando-o e invocando-lhe a ajuda em aperturas. Para cá também pertence a atividade excessivamente grosseira daqueles que fazem pacto com o diabo, a fim de que lhes dê dinheiro a rodo, ou lhes ajude em amores, proteja-lhes o gado, recupere-lhes bens perdidos, como fazem, por exemplo, os magos e os bruxos. Pois todos esses põem seu coração e confiança em outra coisa que não no Deus verdadeiro. Nada de bom esperam dele, nem junto a ele o procuram.
Assim entenderás com facilidade o que e quanto esse mandamento requer, a saber, o coração todo do homem e a confiança inteira, exclusivamente para Deus e mais ninguém. Para ter Deus – fácil te será inferi-lo – não se pode pegar e contê-lo com os dedos, nem é possível metê-lo em bolsa ou encerrá-lo em cofre. Quando o coração o alcança e lhe adere, isto sim, chama-se apreendê-lo. Mas aderir-lhe com o coração outra coisa não é senão confiar inteiramente nele. Por isso quer desviar-nos de tudo o mais, fora dele, e atrair-nos para si, visto ser o único e eterno bem. É como se dissesse: O que anteriormente procuraste junto aos santos ou confiaste receber do Mamon ou de qualquer outra coisa, espera-o tudo de mim e considera-me como aquele que te quer ajudar e derramar copiosamente sobre ti tudo o que é bom.
Eis que aqui tens o que é a verdadeira honra e culto divino agradável a Deus e por ele ordenado sob pena de ira eterna, a saber, que o coração não conheça outro consolo e confiança senão a ele. E disso não se deixará arrebatar, mas, sim, há de, sobre isso, arriscar e pospor tudo quanto existe na terra. Fácil te será compreender e julgar, em contraste com isso, como o mundo pratica apenas falso culto a Deus e idolatria. Porque jamais um povo foi tão ímpio que não instituísse e observasse algum culto divino. Cada um erigiu em deus especial aquele de quem fiava coisas boas, ajuda e consolo.
Assim, por exemplo, aqueles gentios que punham sua confiança em poder e domínio erigiram o seu Júpiter em deus supremo; os outros, que aspiravam a riqueza, felicidade ou prazer e dias bons, a Hércules, Mercúrio, Vênus ou outros; as mulheres grávidas a Diana ou Lucina, e assim por diante. Cada qual erigia em deus para si aquilo a que o atraía o coração. De sorte que, realmente, também na opinião de todos os pagãos ter um deus quer dizer confiar e crer. O erro, porém, está em que seu confiar é falso e errado, porquanto não se dirige ao único Deus, além do qual, na verdade, não há Deus, nem no céu, nem na terra. Por isso, os gentios, efetivamente, transformam sua própria fantasia e sonho a respeito de Deus em ídolo e fiam no puro nada. É o que se dá com toda a idolatria. Pois ela não consiste apenas em erigir uma imagem e adorá-la, mas, principalmente, num coração que pasma a vista em outras coisas e busca auxílio e consolo junto às criaturas, santos ou diabos, e não faz caso de Deus, nem espera dele este tanto de bem: que ele queria ajudar. Também não crê que procede de Deus o que de bem lhe sucede.
Existe, além disso, outro culto falso. Trata-se da maior idolatria que até agora praticamos, e ela ainda impera no mundo. Nela, também se fundamentam todas as ordens religiosas. Diz respeito apenas à consciência, quando essa procura ajuda, consolo e salvação em suas próprias obras e presume de forçar a Deus a lhe abrir as portas do céu, e calcula quantas doações fez, o número de vezes que jejuou, rezou missa, etc. Nessas coisas põe sua confiança e delas se abona, como se nada quisesse receber gratuitamente de Deus, mas obtê-lo por esforço próprio ou merecê-lo de modo supererrogatório [supérfluo], exatamente como se Deus estivesse de estar a nosso serviço e ser nosso devedor, nós, porém, os seus senhores feudais. Que é isso senão fazer de Deus um ídolo, sim um deus-maçã, e a si mesmo reputar-se Deus e em tal se erigir? Mas isso aí é um tanto erudito demais, impróprio para alunos de pouca idade.
Todavia, a fim de notarem e reterem bem o sentido desse mandamento, diga-se aos simples este tanto: deve confiar-se exclusivamente em Deus e dele prometer-se e esperar apenas coisas boas. Pois é ele quem nos dá corpo, vida, comida, bebida, nutrição, saúde, proteção, paz e todo o necessário em bens temporais e eternos. Além do que nos preserva de infortúnios e, quando algo nos sobrevém, ele nos salva e liberta. De forma que só Deus – conforme bastantemente se disse – é aquele de quem se recebe todo o bem e por quem se é livrado de todo infortúnio. A meu ver, essa também é a razão por que nós, alemães, desde tempos antigos, designamos a Deus precisamente com esse nome – mais fina e apropriadamente que qualquer outra língia – da palavra “gut”, por ser ele fonte eterna que transborda de pura bondade e do qual mana tudo o que é e se chama “bom”.
Pois, ainda que, de resto, muita coisa boa nos venha de homens, todavia, é receber de Deus tudo quanto se recebe por seu mandado e ordem. Nossos pais e todas as autoridades e, a mais disso, cada um relativamente ao seu próximo têm ordem de nos fazerem toda sorte de bem. De maneira que não o recebemos deles, senão de Deus, por intermédio deles. As criaturas são apenas a mão, o canal e o meio através de que Deus tudo concede, assim como dá seios e leite à mãe para dá-los à criança e dá grãos e toda espécie de frutos da terra para alimentação. Criatura nenhuma pode produzir, por si mesma, um só que seja desses bens. Homem algum se atreva, por isso, a tomar ou a dar algo, a menos que Deus o haja ordenado, a fim de reconhecermos que são dádivas de Deus e que também não se rejeitarão esses meios de receber bens através das criaturas, nem se procurarão, presunçosamente, maneiras e caminhos diversos dos que Deus ordenou. Isso não seria receber Deus, senão procurar de si mesmo.
Atente, pois, cada qual em si mesmo, para que esse preceito seja magnificado e exaltado acima de todas as coisas e não seja levado de galhofa. Inquire e esquadrinha o teu próprio coração miudamente. Descobrirás, então, se se apega ou não com Deus apenas. Se tens um coração que é capaz de esperar somente coisas boas de Deus, especialmente em aflições e penúria, e que, a mais disso, sabe renunciar e abandonar tudo o que não é Deus, então tens o único e verdadeiro Deus. Se, inversamente, o coração se apega em outra coisa, de que se promete, a título de consolo, mais bem e socorro que de Deus, e se, ao se encontrar situação desesperadora, foge dele em vez de para ele refugir, então tens um outro deus, um ídolo.
A fim de que se advirta, por conseguinte, que Deus não quer ver isso tratado de resto, porém, seriamente, quer velar no seu cumprimento, juntou ao preceito, primeiro, uma terrível ameaça, em seguida, uma bela e confortadora promessa, que também se devem inculcar bem e, nelas, martelar junto à mocidade, para que as tome a peito e as lembre.
(Catecismo Maior de Martinho Lutero, in “Livro de Concórdia – As Confissões da Igreja Evangélica Luterana”, Editoras Concórdia/Sinodal/Ulbra, 6ª ed., 2006, pp. 394-399)

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Fontes Transcendentes de Ternura



por John Piper
A ternura de Deus para com os humildes está arraigada em sua auto-suficiência transcendente. Isto significa que aqueles que amam enaltecer a grandeza de Deus (o que todos deveriam fazer, de acordo com Salmos 40.16) precisam deleitar-se na ternura para com os humildes. Deus exalta a sua auto-suficiência transcendente por amar o órfão, a viúva e o estrangeiro.
Deus é Deus sobre todos os outros deuses. Ele é o Senhor sobre todos os senhores. Ele é "grande". É "poderoso". É "temível". Com base nesta grandeza, Moisés disse que Deus "não faz acepção de pessoas, nem aceita suborno". Tudo isso enfatiza a auto-suficiência transcendente de Deus. Ele não aceita suborno, porque não tem motivo para aceitá-lo. Deus já possui todo o dinheiro do universo, e controla o subornador. Ele está acima dos subornos como o sol está acima das velas ou como a beleza está acima dos espelhos.
Moisés também disse que Deus não faz acepção de pessoas. Ou seja, Ele não tenta conquistar o favor de alguém por meio de tratamento especial. Fazer acepção de pessoas é outro tipo de suborno, não com dinheiro, mas com tratamento privilegiado. Deus está acima disso, porque não precisa do favor dos outros. Se Ele quer que algo seja feito, não fica preso a estratégias coercivas. Ele simplesmente o realiza. Fazer acepção de pessoas é o que você faz, quando não pode enfrentar as conseqüências da justiça. Mas Deus não é somente capaz de enfrentar essas conseqüências, Ele é a fonte de toda capacidade de enfrentá-las. Deus não depende de ninguém, além dEle mesmo. Ele é transcendentemente auto-suficiente.
Agora, temos a parte mais preciosa. Com base nessa auto-suficiência transcendente, Moisés disse que Deus "faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes". Visto que Deus não pode ser subornado pelo rico e não tem deficiências a serem remediadas por meio do favoritismo, Ele trabalha em favor daqueles que não se podem dar ao luxo de pagar subornos e que nada têm para atrair a parcialidade dEle — o órfão, a viúva e o estrangeiro. Esta é a razão por que eu disse que a ternura de Deus para com o humilde está arraigada em sua auto-suficiência transcendente.
Em seguida, temos a aplicação no versículo 19: "Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito". Isto não deve ser feito por sermos transcendentemente auto-suficientes. Deve ser feito por sermos os beneficiários da abundante plenitude transcendente de Deus. Visto que o nosso Deus transcendente age por nós e nos satisfaz consigo mesmo, podemos nos unir a Ele em condescendência. Esta é a razão para crermos que continuaremos a ser beneficiários, se não tentarmos suborná-Lo com nossas obras ou exibir-nos para conquistar a predileção dEle. Se nos reconhecermos como pessoas em condição de desamparo, semelhante à de uma viúva, de um órfão ou de um estrangeiro, e dependermos da espontânea graça futura de um Salvador auto-suficiente, seremos amados para sempre. E, sendo amados dessa maneira, teremos poder e prazer em amar como somos amados.
Isto é o que está subentendido em Tiago 1.27: "A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações". Esta é a verdadeira religião, porque flui da auto-suficiência transcendente de Deus, é sustentada pela sua graça e ecoa para a sua glória. Isto não corresponde a fazer o bem socialmente. É uma evidência da abundante provisão de Deus. Que Deus nos torne um povo cheio de ternura, para a glória de sua transcendente auto-suficiência!

Extraído do livro: Uma Vida Voltada para Deus, de John Piper.


Copyright: © Editora FIEL






sábado, 6 de agosto de 2011

A Vergonha de não defender a Verdade – João Calvino (1509-1564)


Temos de menosprezar todos os artifícios e imposturas de Satanás e todas as invenções humanas como coisas frívolas e carnais, já que corrompem a pureza cristã; nesse particular diferindo, como verdadeiros mártires de Cristo, das pessoas irracionais que sofrem por meras absurdidades. Em segundo lugar, assegurando-nos da boa causa, consequentemente, temos de ser inflamados para seguir a Deus aonde quer formos por Ele chamados. Sua Palavra tem de ter tal autoridade para conosco como ela merece, e, havendo-nos retirado deste mundo, temos de nos sentir arrebatados na busca da vida santificada.

Porém, é mais que estranho que, embora a luz de Deus esteja brilhando mais radiantemente que nunca, haja uma lamentável falta de zelo. Em resumo, é impossível negar que é para nossa grande vergonha, para não dizer temível condenação, que conhecemos tão bem a verdade de Deus e temos tão pouca coragem em defendê-la. Acima de tudo, quando olhamos para os mártires do passado, nos envergonhamos de nossa covardia! Em sua maioria não eram pessoas muito versadas nas Santas Escrituras para poderem disputar em todos os assuntos. 

Eles sabiam que havia um Deus, a quem convinham adorar e servir; que haviam sido remidos pelo sangue de Jesus Cristo a fim de colocarem a confiança de salvação nEle e em sua graça; e que todas as invenções dos homens, sendo mera inutilidade e lixo, eles deviam condenar todas as idolatrias e superstições. Numa palavra, sua teologia era, em substância, esta: Há um Deus que criou todo o mundo e nos declarou sua vontade por Moisés e pelos profetas, e, finalmente, por Jesus Cristo e seus apóstolos; e temos um Redentor exclusivo, que nos comprou por seu sangue e por cuja graça esperamos ser salvos. Todos os ídolos do mundo são amaldiçoados e merecem abominação.

Com um sistema abarcando nenhum outro ponto que não esses, eles foram corajosamente às chamas ou a qualquer outro tipo de morte. Não entravam de dois em dois ou de três em três, mas em tamanhos grupos, cujo número dos que caíram pelas mãos dos tiranos é quase infinito.