Por Michael Lawrence.
Um dos principais enganos que nós fazemos a respeito da história bíblica da Queda é pensar nela somente como um trágico evento histórico que aconteceu no passado, analogicamente ao tsunami no natal de 2004, porém com proporções bíblicas. O problema desse modo de pensar é que nós estamos acostumados a retomar as nossas vidas e nos recuperar de tais obstáculos. Bastante tempo e muito esforço foram necessários, mas Chicago se reergueu após o incêndio de 1871; e o mesmo foi verdade em relação a Banda Achém, Indonésia, após o tsunami de 2004. Porém a Queda não é simplesmente uma tragédia que aconteceu. Embora seja certamente um evento histórico, a Queda é uma realidade contínua que prossegue desenvolvendo-se e afetando as nossas vidas. Assim como uma doença que começa em determinado ponto no tempo, mas progride e segue o seu curso, a Queda tem a uma trajetória, um alvo que ainda não foi alcançado. E para acordarmos da ilusão de que o pior já passou, nós precisamos entender o percurso da Queda.
Para começar, a Queda é progressiva, não estática. Essa é uma das razões porque a história da Queda é tão importante. Ao seguirmos do primeiro e invejoso homicídio de Caim até o assassinato banalizado de Lameque até a cultura de violência dentre os homens dos dias Noé, nós vemos que as coisas ficam ainda piores. Elas não estacionam, e não melhoram. Todavia, apesar da progressão do pecado e da Queda estarem amplamente registradas na história humana; ela é menosprezada pelo coração humano. Como Paulo diz em Romanos 6, a nossa escravidão nos leva a dedicar os nossos corpos a uma contínua e crescente perversidade. Paulo assim afirma em Romanos 1.21: “porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato.” E depois Paulo diz três vezes em devastadora sucessão: “Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração”; ” Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames”; “E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável” (Rm 1.24, 26, 28).
No estágio em que estamos, nenhum de nós é tão ruim quanto poderia ser. Porém abandonados à nossa mercê, sem a mão refreadora de Deus ou a graça de Jesus Cristo no evangelho, o pecado continuaria a progredir em nossas vidas. Ele nunca retrocede. Ele sempre avança, porque a Queda tem um alvo. Esse alvo é a nossa morte e condenação eterna. O pecado irá nos conduzir a uma perversidade maior e excedente. Essa é uma das razões porque o vício é uma força tão poderosa e uma imagem tão poderosa do pecado. Por definição, um vício nunca se satisfaz. Ele sempre quer mais. Idolatria é como um vício. Idolatria nunca concede o que promete, porém, assim como o vício, simplesmente diz: “Tenta outra vez… e um pouco mais; talvez desta vez você se satisfaça”. Assim como o viciado abandonado ao seu vício, é uma coisa terrível ser abandonado por Deus em nosso pecado, pois o nosso pecado, aparentemente domado no momento, planeja nos devorar.
Essa é uma das razões porque Deus nos deu a lei: com o objetivo de restringir o pecado em seu avanço desenfreado. Como crentes, nós não devemos temer a lei. Ainda que erroneamente possamos utilizar a lei para tentarmos parecer melhores diante de Deus, nós também podemos receber a lei como uma boa dádiva de Deus. Tendo sido libertos do poder do pecado pelo evangelho, a lei não mais nos condena, mas nos mostra como viver uma vida que reflete o santo caráter de Deus. Como pregadores, nós precisamos fazer mais do que utilizar a lei como caminho para trazer as pessoas para Cristo. Também precisamos ensinar a lei de modo que os cristãos saibam como viver num mundo desregrado e impiedoso.
Enquanto cidadãos, nós não devemos temer ou nos opor à ação e ao exercício da lei; e enquanto cidadãos cristãos, nós devemos ativamente promover boas leis. Românticos como Rousseau e seus herdeiros modernos, seja os da esquerda ou direita liberal, estão redondamente enganados. O estado da natureza não é próximo do estado da inocência. Pelo contrário, o estado da natureza é próximo do estado de vício e brutalidade. Deus nos concedeu a lei para restringir tal avanço. Assim, como Paulo nos lembra em Romanos 13, o governo e as suas leis são boas dádivas de Deus, para recompensar aquilo que é correto e restringir aquilo que é mal.
Porém, ainda que a Queda seja progressiva, ela não será progressiva eternamente. Chegará o dia em que a Queda será punida. Porque o pecado nunca se satisfaz, mas sempre pede por mais, ele é, em última instância, uma provocação contra um Deus santo. Deus descreve a si mesmo para Moisés como paciente e misericordioso. Contudo, como Pedro nos adverte em 2 Pedro 3, nós não devemos confundir a paciência de Deus com indiferença. Deus também diz que “não inocenta o culpado” (Êxodo 34.7). Independente do que gostaríamos de pensar, o desenvolvimento da Queda não termina em reabilitação ou transformação gradual, à medida que as coisas ficam melhores e melhores. De acordo com Apocalipse 18, a Queda termina da maneira que merece.
Jesus diz que o Dia do Julgamento já foi determinado na mente de Deus, e a visão daquele dia revelada em Apocalipse 18 é terrível. Caracterizada como como uma grande cidade, a criação pecadora é submetida ao julgamento de Deus para nunca mais se levantar. Repetidamente, o capítulo ecoa a frase “nunca mais… em ti”. Música “nunca mais será ouvida em ti”. Trabalhadores “nunca mais serão encontrados em ti”. Luz “nunca mais brilhará em ti”. Noivas e noivos “nunca mais serão ouvidos em ti”. Essa visão do julgamento é tão final e definitiva que o anjo declara que a cidade “nunca mais será encontrada”.
Não somente final, mas esse julgamento será justo. O mesmo capítulo nos diz que Deus se lembrará dos crimes desse mundo idólatra e o retribuirá por seus crimes. Ele dará a cada um de nós exatamente o que merecemos. Na tentativa de descrever esse terrível dia da vingança de Deus, do seu julgamento punitivo, a Bíblia utiliza diversas imagens: escuridão externa, pranto sem fim e ranger de dentes, um lago de fogo, morte eterna. O que é evidente em todas essas imagens é que a justiça do julgamento de Deus é expressa na punição eterna que ele impõe. A ofensa do pecado contra um Deus infinito e eterno é uma ofensa infinita. Por isso, a punição merecida, corretamente, nunca acaba.
Aqui está o engano em pensar na Queda como simplesmente algo que aconteceu no passado. A história da Queda é uma história de desespero, como uma doença incurável que inevitavelmente conduz a uma morte dolorosa ou como uma loucura que conduz a sua vítima mais longe ainda da sanidade e razão. Por nós mesmos, essa é a nossa história; a história do nosso passado, mas também a história do nosso futuro ininterrupto. Em nossa pregação e ensino, pode parecer mais confortável aliviar esse aspecto da Queda. Ninguém gosta de pensar em seus entes e amigos queridos em tormento eterno. No entanto, ignorar a verdade não faz com que ela vá embora. Isso simplesmente deixa almas eternas desmotivadas e desequipadas para lidar com questões de consequências eternas.
Michael Lawrence é o pastor principal da Hinson Baptist Church em Portland, Oregon, EUA, e o autor de Biblical Theology in the Life of the Church (publicado em inglês pela editora Crossway, sem tradução em português).
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