domingo, 31 de julho de 2011

A mais profunda divisão entre os homens – J. I. Packer


A mais profunda divisão entre os homens, neste mundo, pode ser expressa assim: alguns têm conhecimento do pecado, e outros não. Essa divisão não se verifica apenas entre a igreja e o mundo; ela manifesta-se até mesmo na igreja. Ao falar de "conhecimento do pecado" não me refiro ao discernimento dos pecados dos outros, acompanhado de virtuosa indignação contra os mesmos. Vez por outra, todos nós sentimos tal indignação, como se deu com aquele fariseu, na narrativa de Jesus, o qual agradeceu a Deus por não ser como os outros homens, tal como o publicano (Lc 18.11, 12). Com essa expressão refiro-me antes à consciência de sua própria culpa, perversão, impureza e falta de capacidade moral e espiritual, conforme Deus as vê. Se temos ou não tal conhecimento não depende nem de vivermos moral ou imoralmente à luz de padrões convencionais, nem depende de nosso estilo de vida preferido ser ordeiro e controlado, em oposição ao estilo descontrolado e casualista. Tudo quanto pode ser dito sobre o estilo de vida é que se alguém não é um daqueles que encaixam o seu viver nos moldes da respeitabilidade convencional, de tal modo que os homens pensem bem a seu respeito, então talvez essa pessoa esteja mais em contato consigo mesma e melhor capacitada para perceber que o diagnóstico bíblico do pecado é uma carapuça que se ajusta à sua cabeça. Nos dias de Jesus, isso aconteceu com os publicanos e outros (pecadores) sem reputação, em contraste com os fariseus. Isso vem se repetindo desde então. O falecido Peter Sellers, aquele maravilhoso ator que representou vários personagens e deu ao mundo Grytpype-Thynne, Henry Crun, Major Bloodnok, Blue-bottle, Fred Kite, Inspetor Clouseau, Dr. Strangelove, o temível Fu Manchu e muitos outros, disse francamente que não sabia quem ou o que ele era, à parte dos papéis que desempenhava. Os escritores que falaram sobre ele, referiram-se à máscara por detrás da máscara. Por semelhante modo, a religião pode ser apenas um papel teatral, produzindo o estado mental que o trecho do Salmo 36.2 atribui aos ímpios: "A transgressão o lisonjeia a seus olhos e lhe diz que a sua iniquidade não há de ser descoberta nem detestada". 

Que significa conhecer o pecado em nós mesmos? Significa mais do que saber que, algumas vezes, não somos exatamente perfeitos — embora alguns achem difícil chegar a esse ponto. Significa notar os motivos do interesse próprio: a auto-imposição, o avanço pessoal, a autojustificação, a auto-satisfação — motivos esses que estimulam as nossas ações. Significa compreender que esses motivos revelam o nosso verdadeiro "eu", porque procedem do nosso próprio "coração"— não, naturalmente, daquele músculo que bombeia o sangue, e, sim, do âmago real oculto de nossa personalidade, de onde, segundo Jesus ensinou, procedem "os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura" (Mc 7.21, 22). "Enganoso é o coração, mais do que todas as cousas, e desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?", declarou Deus por meio do profeta, em Jeremias 17.9, 10. E Ele mesmo deu a resposta: "Eu, o SENHOR, esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos". Conhecer o pecado, pois, é enfrentar o fato que, em nosso estado caído, não podemos fazer nossos corações assu¬mirem a atitude requerida por Deus, de autonegação, de auto-humilhação, de tomar a cruz e dar a vida em favor do próximo. Alguns, na verdade, podem sentir prazer em ter aparência de religiosos — o Oriente e o Ocidente estão repletos de pessoas para os quais isso representa uma satisfatória viagem pelo "ego". Mas, nenhum ser humano caído apre¬cia naturalmente as privações e asperezas da auto-entrega ao Deus vivo. Tereza de Ávila foi ousada ao dizer: "Senhor, se é assim que tratas os teus amigos, não me admira que tenhas tão poucos". Finalmente, o conhecimento do pecado é reconhecer que precisamos de perdão, e que, sem perdão, não haverá a mínima esperança de comunhão com Deus.


Como adquirimos o conhecimento do pecado? Por meio da lei de Deus, assevera Paulo — a lei que reflete o caráter de Deus e expressa a sua vontade para o nosso viver, e da qual há elementos gravados na consciência de cada ser humano (cf. Rm 2.14, 15); a lei que foi outorgada no Sinai e explicada pelos profetas, pelos apóstolos e pelo próprio Senhor Jesus. "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz aos que vivem na lei o diz, para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado" (Rm 3.19, 20). É claro que, quando Paulo fala sobre a "lei", ele indica padrões de viver para Deus, em adoração, bem como de viver para o próximo, por meio do serviço; ele indica também indispensáveis padrões de bondade, assim como especificações quanto a males proibidos; e, a demanda por constante perfeição (cf. Tg 2.10), que ultrapassa em muito a esforços ocasionais; e, ainda, a declaração do juízo retributivo contra os transgressores da lei. Ora, segundo Paulo ensina, ao nos fazer conscientes do pecado, a lei funciona assim:

1.      A lei identifica o pecado, definindo e retratando-o.

2.      A lei desperta a desobediência. O pecado é uma espécie de alergia no sistema moral e espiritual do homem caído, uma reação anómala à lei de Deus. O pecado irrompe irracionalmente, sob a forma de um impetuoso desejo, contrário aos mandamentos do Senhor. "Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça, se a lei não dissera: Não cobiçarás. Mas o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupiscência..." (Rm 7.7,8). Todo aquele que procura observar qualquer dos mandamentos de Deus, no nível da motivação, disciplinando-se para querer somente aquilo que Deus quer, passa por uma experiência similar a de Paulo. Desta forma, cada um de nós pode detectar a sua própria depravação total, se até este ponto temos duvidado dela.

3.      A lei condena a desobediência por ela mesma fomentada, capacitando-nos assim a nos vermos como realmente somos, isto é, culpados diante de Deus, condenados à morte. "Outrora, sem a lei, eu vivia; mas, sobrevindo o preceito, reviveu o pecado, e eu morri... Porque o pecado, prevalecendo-se do mandamento, pelo mesmo mandamento me enganou [transpondo minhas defesas num ponto, enquanto eu estava ocupado em repeli-la em outro] e me matou [isto é, trouxe-me à miséria de a cada momento saber que estava perdido]" (Rm 7.9, 11).

Assim, por induzir-nos ao desespero, a lei nos ensina a olhar para fora de nós e de nossas fantasiosas realizações morais e nos ensina a virmos a Cristo como pecadores, para sermos perdoados. Que isso aconteça, faz parte do plano misericordioso de Deus. É conforme Lutero explicou em certa ocasião: "Enquanto os pecados são desconhecidos, não há lugar para a cura, nem esperança de que ela aconteça; pois, os pecadores que pensam estarem saudáveis, e que não precisam de médico, não suportarão o toque da mão do curador. Portanto, a lei é necessária para nos dar conhecimento do pecado, a fim de que o homem orgulhoso, que pensa estar são, possa ser humilhado pela descoberta de sua imensa iniquidade pessoal e suspire e anele pela graça que é oferecida em Cristo'' (The Bondage ofthe Will — A Escravidão da Vontade — tradução de J. I. Packer e O. R. Johnston, p. 288). Nas próprias palavras de Paulo: "De maneira que a lei nos serviu de aio [paidagõgos, o escravo encarregado da educação de uma criança] para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé" (Gl 3.24).

A isto pode ser acrescentado que Jesus Cristo, o Filho de Deus em carne, pode verdadeiramente ser descrito não somente como a graça encarnada, mas também como a lei encarnada. A sua vida e os seus ensinos revelam a santidade diante de nós, de um modo que tanto nos instrui quanto nos condena. Para muitos crentes, o ato de meditar nas palavras de Jesus tem servido para despertar e aprofundar o senso de pecado, mais do que qualquer outra coisa. Não podemos pensar sobre o pecado com mais profundidade do que isto: tudo o que somos, moral e espiritualmente, é aquilo que Cristo não é. Já tivemos ocasião de dizer que o conhecimento do pecado vem através do conhecimento de Deus. Agora, devemos acrescentar que esse conhecimento vem principalmente através do conhecimento do Deus encarnado.

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