domingo, 15 de janeiro de 2012

Autoglorificação - João Calvino (1509-1564)

A verdade de Deus, indubitavelmente, prescreve que devemos examinar-nos a nós mesmos, isto é, ela requer conhecimento de tal molde que não só nos afaste para longe de toda confiança de capacidade pessoal, mas ainda, destituídos de toda razão de gloriar-nos, nos conduza à submissão. Esta regra convém manter, caso queiramos atingir à justa meta, seja do saber, seja do agir.


Nem me é oculto o quanto se deve aplaudir esse parecer, seja que nos convida antes a considerar o que haja de bom em nós, ou a atentar para nossa deplorável miséria, juntamente com nossa indignidade, a qual nos deve esmagar de vergonha.

Com efeito, nada há que a natureza humana mais cobice que ser afagada por lisonjas. E por isso onde ouve que seus predicados se revestem de grande realce, para esse rumo propende com extrema credulidade. Portanto, não é de admirar que, neste ponto, se haja transviado, de maneira profundamente danosa, a maioria esmagadora dos homens. Ora, uma vez que é ingênito a todos os mortais que sintam um cego amor por si mesmos, de muito bom grado se persuadem de que nada neles existe que, com justiça, deva ser abominado. Dessa forma, mesmo sem influência de fora, por toda parte obtém crédito esta opinião totalmente fútil: que o homem é a si amplamente suficiente para viver bem e venturosamente. Porque, se alguns há que se revelam possuidores de mais modéstia, a tal ponto que concedam algo a Deus para não parecer que atribuem tudo a si mesmos, de tal maneira repartem entre Deus e eles, que a principal parte da glória, e toda a presunção, sempre fica para eles.

Ora, se uma palavra ocorre que, com seus afagos, lisonjeie o orgulho que faz espontâneo comichão nas entranhas do homem, nada há que mais o deleite. Daí, ao ser acolhido com grande aplauso de quase todos os séculos, cada um, com seu encômio, sente que foi exaltada mui favoravelmente a excelência da natureza humana. Mas, na verdade, qualquer que seja tal enaltecimento da excelência humana que ensine o homem a estar satisfeito em seu íntimo, com nenhuma outra coisa mais se encanta do que com essa afabilidade própria; e de fato tanto o engana, que todos quantos concordam com isso, na mais deplorável ruína os perde. Pois, a que leva, estribados em toda fútil confiança pessoal, deliberar, planejar, tentar, empreender aquilo que julgamos pertinente à condição, e já em nossos primeiros esforços de fato nos quedamos deficientes e carentes, seja de são entendimento, seja da verdadeira virtude, contudo prosseguirmos, obstinadamente, até que nos precipitemos à ruína? E, no entanto, aos que confiam poder fazer algo de sua própria capacidade não pode suceder de outra maneira.

Portanto, se alguém dá ouvidos a tais mestres que nos incitam a tão-somente mirarmos nossas boas qualidades, não avançará no conhecimento de si próprio; ao contrário, se precipitará na mais ruinosa ignorância.

As Duas Facetas do real Conhecimento de nós mesmos – João Calvino

Daí, embora a verdade de Deus nisto concorde com o consenso geral de todos os mortais, a saber, que o segundo aspecto da sabedoria reside no conhecimento de nós mesmos, entretanto é grande a divergência na própria maneira de alcançar esse conhecimento. Ora, segundo o método da carne em seu julgar, o homem parece ter aprofundado conhecimento de si até que, arrimado tanto em seu entendimento, quanto em sua integridade, se deixa dominar pela ousadia e se incita aos reclamos da virtude, e declarada guerra aos vícios tenta aplicar-se com todo empenho àquilo que é nobre e honroso.

Quem, no entanto, se mira e examina segundo a norma do juízo divino, nada encontra que eleve seu ânimo à genuína confiança pessoal. E quanto mais penetrantemente a si perscruta, tanto mais se deprime, até que, havendo abdicado inteiramente a toda confiança pessoal, nada deixa a si mesmo para regular a vida retamente.

Contudo, tampouco quer Deus que nos esqueçamos de nossa nobreza primeva, nobreza que conferira a nosso pai Adão, nobreza que por certo deve, com razão, despertar nosso zelo pela justiça e pela bondade. Pois não podemos sequer pensar, seja em nossa própria condição original, seja para quê fomos criados, que não sejamos acicatados a meditar na imortalidade e a anelar pelo reino de Deus. Tão longe está, porém, este reconhecimento de fomentar-nos a presunção, ao contrário, subjugada esta, à humildade nos prostra.

Ora, que condição original é essa? Evidentemente, aquela da qual decaímos. Qual é o propósito de nossa criação? Aquele do qual estamos de todo alienados. Por isso, enfastiados de nossa mísera situação, gemamos; e, gemendo, suspiremos por aquela dignidade perdida. Quando, porém, dizemos que ao homem importa nada ver em si próprio que o torne presunçoso, queremos dizer que nada existe nele cujo arrimo se deva tomar como motivo de orgulho.

Portanto, se assim se prefere, dividamos o conhecimento de si próprio que o homem deve ter, de tal modo que, em primeiro lugar, considere para que fim foi criado e provido de dotes que não se deve desprezar, mercê de cuja reflexão se desperte à meditação do culto divino e da vida futura; em segundo lugar, pondere suas capacidades; ou, de fato, sua carência de capacidades, a qual, uma vez percebida, se prostre em extrema confusão, como que reduzido a nada.

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