sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Manuseando sabiamente os sábios dizeres da Bíblia


R. C. Sproul
Toda cultura parece ter a sua própria e única coletânea de sabedoria - breves insightsde seus sábios. Muitas vezes, essas porções de sabedoria são preservadas na forma de provérbios. Nós temos provérbios na cultura americana. Refiro-me a ditados como “um homem prevenido vale por dois” ou “dinheiro poupado é dinheiro ganho”.
A Bíblia, obviamente, tem um livro inteiro desses pequenos dizeres – o livro de Provérbios. No entanto, essa compilação de sábios dizeres é diferente de todas as outras coletâneas, visto que tais palavras refletem não apenas a sabedoria humana, mas a sabedoria divina, pois esses provérbios são inspirados por Deus.
Ainda assim, é preciso ter muito cuidado na forma como abordamos e implementamos esses sábios dizeres. Simplesmente o fato de serem inspirados não significa que os provérbios bíblicos são como leis, que impõem uma obrigação universal. Mas algumas pessoas os tratam como se fossem mandamentos divinos. Se nós os considerarmos dessa forma, incorreremos em todos os tipos de problemas. Os Provérbios, mesmo sendo divinamente inspirados, não se aplicam necessariamente a todas as situações da vida. Antes, refletem percepções que são, em geral, verdadeiras.
Para ilustrar esse ponto, deixe-me lembrá-lo de dois provérbios da nossa própria cultura. Primeiro, dizemos frequentemente: “Pense bem antes de agir!”. Essa é uma percepção valiosa. Mas nós temos outro provérbio que parece contradizê-lo: “Quem não arrisca, não petisca”. Se tentarmos aplicar esses dois provérbios ao mesmo tempo e da mesma forma, em todas as situações, ficaríamos completamente confusos. Em muitas situações, a sabedoria sugere que examinemos cuidadosamente onde devemos pisar, de forma que não nos movamos cegamente. Ao mesmo tempo, não podemos ficar tão paralisados, analisando os prós e contras do nosso próximo passo, que hesitemos demasiadamente antes de tomar uma decisão, ao ponto de perdermos as oportunidades quando elas se apresentarem a nós.
Naturalmente, não nos incomoda encontrar provérbios aparentemente contraditórios em nossa própria sabedoria cultural. Mas quando os descobrimos na Bíblia, nos encontramos lutando com perguntas sobre a confiabilidade das Escrituras. Deixe-me citar um exemplo bem conhecido. O livro de Provérbios diz: “Não responda ao insensato com igual insensatez” (26:4a). No versículo seguinte, lemos: “Responda ao insensato como a sua insensatez merece” (26:5a). Como podemos seguir essas instruções opostas? Como ambas podem ser declarações de sabedoria?
Novamente, conforme o exemplo dado acima, a resposta depende da situação. Há certas circunstâncias nas quais não é sábio responder ao tolo segundo a sua tolice, mas há outras circunstâncias nas quais é sábio responder ao tolo segundo a sua tolice. Provérbios 26:4 diz: “Não respondas ao insensato segundo a sua estultícia, para que não te faças semelhante a ele” (grifo nosso). Se alguém está falando tolices, geralmente não é sábio tentar falar com ele. Tal discussão não levará a lugar nenhum, e aquele que tenta continuar a discussão com o insensato está em perigo de cair na mesma tolice. Em outras palavras, há circunstâncias em que é melhor ficarmos calados.
Em outras ocasiões, todavia, pode ser útil responder ao tolo segundo a sua tolice. Provérbios 26:5 diz: “Responda ao insensato como a sua insensatez merece, do contrário ele pensará que é mesmo um sábio” (grifo nosso). Apesar de ser mais conhecida como uma forma de arte utilizada pelos antigos filósofos gregos, os hebreus já entendiam e usavam, por vezes no ensino bíblico, uma das formas mais eficazes de argumentação. Refiro-me a reductio ad absurdum, que reduz o argumento da outra pessoa ao absurdo. Por meio dessa técnica é possível mostrar a uma pessoa a conclusão necessária e lógica que flui de seu argumento e, então, demonstrar que as suas premissas levam, em última análise, a uma conclusão absurda. Portanto, quando uma pessoa possui uma premissa tola e dá um argumento tolo, isso, às vezes, pode ser usado de forma muito eficaz para responder ao tolo segundo a sua tolice. Você entra em seu território e diz: “Certo, eu vou assumir o seu argumento, levá-lo à conclusão lógica e te mostrarei a tolice que há nele”.
Assim, o livro de Provérbios tem o objetivo de nos dar orientações práticas para experiências diárias. É um tesouro negligenciado do Antigo Testamento, com riquezas incalculáveis em suas páginas, que está à nossa espera,?? com o intuito de guiar nossas vidas. Ele detém conselho real e concreto, que vem da mente do próprio Deus. Se quisermos sabedoria, esta é a fonte da qual devemos beber. Aquele que é tolo negligenciará esta fonte. Aquele que está com fome da sabedoria de Deus beberá sempre dela. Precisamos ouvir a sabedoria de Deus para darmos fim às muitas distrações e confusões da vida moderna. Porém, como deve acontecer em toda a Palavra de Deus, precisamos ser zelosos para aprender a lidar com o livro de Provérbios corretamente.


R. C. Sproul nasceu em 1939, no estado da Pensilvânia. É ministro presbiteriano, pastor da igreja St. Andrews Chapel, na Flórida. É fundador e presidente do ministério Ligonier, professor e palestrante em seminários e conferências, autor de mais de sessenta livros, vários deles publicados em português, e editor geral da Reformation Study Bible.

Fonte:http://www.ministeriofiel.com.br/artigos/detalhes/593/Manuseando_sabiamente_os_sabios_dizeres_da_Biblia

terça-feira, 27 de agosto de 2013

A Eleição faz supérflua a pregação?


POR JOSEMAR BESSA

Se há uma eleição divina - Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor;Efésios 1:4 – e se esse Deus que elegeu é soberano e não pode ser frustrado, e irá trazer os eleitos a salvação, pregar, sofrer pela propagação da Verdade, morrer como o Apóstolo Paulo... não seria algo supérfluo?

Esse é um raciocínio repetido a exaustão, mas o que ele não consegue entender é o claro ensino do Apóstolo Paulo, por exemplo, ( que foi martirizado por pregar o evangelho ) que Deus ordenou não apenas a salvação dos eleitos, mas por sua graça, bondade, vontade... também ordenou os meios para realizar esse fim. O que envolve a pregação do evangelho até os confins do mundo – pregação essa que tem propósitos distintos: “Porque para Deus somos o bom perfume de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem. Para estes certamente cheiro de morte para morte; mas para aqueles cheiro de vida para vida...” - 2 Coríntios 2:15-16

A ordem é pregar a Verdade à custa de oposição, aflição, de modo que os eleitos possam ser salvos, sendo regenerados pelo Espírito, então crendo, voltando de seus pecados para Deus... Não é claramente esta a causa que Paulo dá para sua vida, pregação, prisão, morte...?

“Lembra-te de que Jesus Cristo, que é da descendência de Davi, ressuscitou dentre os mortos, segundo o meu evangelho; Por isso sofro trabalhos e até prisões, como um malfeitor; mas a palavra de Deus não está presa. Portanto, tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna.” - 2 Timóteo 2:8-10

Paulo está empenhado em difundir a verdade do Evangelho a ponto de estar disposto a sofrer e resistir a qualquer dificuldade, sofrimento... Mas por quê?
O que Paulo diz aqui em 2 Timóteo é um eco de toda a lógica do que ele ensinou – “Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, pois, invocarão aquele em quem não creram? e como crerão naquele de quem não ouviram? e como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? como está escrito: Quão formosos os pés dos que anunciam o evangelho de paz; dos que trazem alegres novas de boas coisas.” - Romanos 10:13-15

O homem deve ouvir o evangelho para ser salvo, e como ouvirão se não há um pregador? Então Paulo sofre privações terríveis como expressão de seu compromisso de que os eleitos devem ouvir o evangelho para crer e serem salvos: “...tudo sofro por amor dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus com glória eterna.” - 2 Timóteo 2:8-10. Ele sabe que Deus escolheu mostrar sua graça escolhendo homens indignos e merecedores do inferno, ele sabem que estes não podem deixar de serem salvos. No entanto, ele também sabe que  eles não são salvos até que creiam no evangelho.

Por isso o “para que” no verso 10 - “...tudo sofro por amor dos escolhidos,para que também eles...” – Ele tudo sofre com esse propósito, finalidade – por amor aos escolhidos – o sofrimento de Paulo tem um objetivo em vista – que entre aqueles que ouvem o evangelho, aqueles que foram escolhidos por Deus ouçam a boa notícia do evangelho, e ouvindo e crendo, sejam salvos.

Então, ao contrário do argumento tão repetido, a confiança de Paulo em sua pregação do evangelho, até a ponto de sofrer, ser martirizado... está numa convicção profunda:

a) De que as pessoas só são salvas quando ouvem e creem no Evangelho, e
b) Quando os eleitos ouvem o evangelho, eles tem seu coração regenerado para que creiam e sejam salvos.

Paulo não tem nenhum conflito entre a doutrina da Eleição e a necessidade de proclamar o Evangelho. Mesmo que certamente os eleitos não possam deixar de ser salvos, Deus planejou que a propagação, a proclamação do Evangelho é o meio pelo qual eles serão salvos. Em outro lugar Paulo coloca isso claramente nestes termos: “Mas devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade;” - 2 Tessalonicenses 2:13

Deus poderia ter determinado outros meios de chamar os seus eleitos sem a necessidade da proclamação, do sofrimento, do martírio... Mas isso é manifestação de sua graça a nós. Ele de fato em nada precisa de nós, mas em bondade imerecida, desejou que fôssemos instrumentos de seu poder. Paulo nunca se vangloria que a salvação dos filhos de Deus depende dele, de seus esforços, seus sofrimentos... ele diz que simplesmente Deus quer e determinou salvar o seu povo pela pregação da Palavra, e escolheu homens e os enviou para este fim – nós! Apenas instrumentos do Seu Poder!

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Um cálice de 'cale-se' - Um brinde ao Silêncio


                                      Por Hermes C. Fernandes em 15/08/2013


Um cálice de 'cale-se'

O silêncio é tributo prestado àquilo que a alma encanta

Se falo, ao céu expresso o que sinto
Se calo, réu confesso, consinto

Se falo, descrevo o que vejo
Se calo, é pela paz que almejo
Se falo, eu ancoro o desejo
Se calo, num mar calmo velejo
Se falo, demonstro traquejo,
Se calo, de repente um lampejo
Se falo, faço sempre gracejo
Se calo, só desperto bocejo
Se falo, enxurrada despejo
Se calo, valorizo o gotejo

Palavra é braçada.
Silêncio, mergulho.
Palavra é presente.
Silêncio, embrulho.
Palavra é porta.
Silêncio, janela.
Palavra conforta.
Silêncio, anela.
Palavra exorta.
Silêncio, apela.
Palavra distrai.
Silêncio, revela.
Palavra é tinta.
Silêncio é tela.
Palavra distingue.
Silêncio, nivela.
Palavras marcam.
Silêncio, sequela.
Palavra é palácio.
Silêncio, capela.
Palavra é barco.
Silêncio, a vela.
Palavras são partos.
Silêncio, gestação.
De palavras, fartos
Por silêncio buscarão.

Antes de levantar nossas vozes
lembremo-nos que diante dos algozes
O Verbo Divino se calou
Por nós sorveu inteiro o cálice
Se vai orar, primeiro, cale-se
em reverência à sua dor e a eloquência do amor.


* O poema tem a sugestiva forma de cálice.

Fonte:http://www.hermesfernandes.com/2013/08/o-silencio-e-palavra-um-poema.html                    

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Evangelizar é convencer


Elben César

Está conseguindo convencer muita gente, tanto daqui como de quase toda a província da Ásia. (Atos 19.26)
Evangelizar significa convencer uma pessoa de que nem todas as suas crenças e as suas ações estão corretas à luz do evangelho. É um trabalho difícil, demorado e cansativo. O sinônimo de convencer é persuadir. Os dois verbos aparecem várias vezes no livro de Atos, o que é explicável porque era esse o ministério dos apóstolos. Vejam-se os seguintes registros históricos:
Em Tessalônica, Paulo e Silas conseguiram convencer algumas pessoas depois de pregar quatro sábados seguidos (17.4).
Em Corinto, todos os sábados, Paulo falava na sinagoga e procurava convencer os judeus e não judeus (18.4).
Ainda em Corinto, os judeus agarraram Paulo e o levaram ao tribunal, sob a alegação de que estava querendo convencer o povo a adorar a Deus de modo contrário ao deles (18.13).
Em Éfeso, por três meses, Paulo foi à sinagoga e falava, conversava e tentava convencê-los a respeito do reino de Deus (19.8).
Em Cesareia, o rei Agripa não se sentiu convencido e declarou a Paulo: “Por pouco me persuades a me fazer cristão” (26.28, RA).
Outra vez em Éfeso, Demétrio chamou os seus colegas de profissão para dizer que um tal de Paulo estava conseguindo convencer muita gente, tanto na cidade como em quase toda província da Ásia (19.26).
Em Roma, Paulo reuniu um grupo de pessoas em sua casa e desde a manhã até à tarde expôs a Palavra, procurando persuadi-los a respeito de Jesus.
Paulo e os outros sabiam muito bem que a missão precípua do Espírito Santo é convencer o mundo do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16.8)!
>> Retirado de Refeições Diárias: no Partir do Pão e na Oração. Editora Ultimato.
Fonte:http://ultimato.com.br/sites/devocional-diaria/2013/08/13/autor/elben-cesar/evangelizar-e-convencer/

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Deus que Se recusa entrar na caixa


                                                                                                          Por Isque Sicsú

Existe uma expressão muito conhecida, especialmente entre os teólogos, que diz:  “É impossível colocar Deus numa caixinha”. Com essa expressão, queremos dizer que Deus está tão além da compreensão humana, que é impossível propor uma definição que consiga exaurir todo o ser divino.
O problema é que na prática as coisas não funcionam de forma tão simples assim. Depois de passar anos debruçado sobre livros, respirando todos os ácaros das bibliotecas, dissecando as Escrituras nas línguas originais, e aprendendo todos os tipos de categorias teológicas, o teólogo começa achar que Deus é como aquela namorada que conhecemos muito bem. E por isso, ele conclui que pode definir com toda segurança a essência divina. Ele passa a crer que é um especialista em Deus, e que é capaz de explorar e definir a pessoa e o modus operandi divino. Entretanto, este indivíduo “cai do cavalo” quando Deus aparentemente contradiz o seu bairrismo teológico. Ele fica sem respostas quando seus credos não mais explicam, suas categorias não mais comportam e suas definições não mais resumem.
Jó, o personagem bíblico, e seus amigos teólogos sofrem desse mal. São indivíduos que diante de uma aparente incoerência divina, debatem, replicam, treplicam, mas o fato é que suas categorias teológicas não conseguem explicar o que está acontecendo na prática. Observemos com mais cuidado.
O livro de Jó nos apresenta um cenário em que tudo faz sentido, onde todas as categorias teológicas funcionam bem direitinho. Jó, um homem piedoso, justo e temente a Deus, goza abundância, prosperidade e felicidade. Do ponto de vista teológico, tudo bem! Afinal de contas, nada mais normal do que ver Deus abençoando um homem justo e piedoso.
Agora, o castelinho de cartas das categorias teológicas simplesmente desmorona, quando Deus decide sair da caixinha e permitir que as maiores atrocidades aconteçam na vida de um homem justo e piedoso. De repente, Jó perde a fortuna, filhos e a saúde. E agora, José? Como explicar um quadro como esse? Se Deus é bom, soberano e justo, por que ele permite tamanho mal? Por que existem crianças morrendo de fome na África? Por que pessoas piedosas morrem nas filas dos hospitais do SUS? Por que tsunamis e terremotos varrem países matando milhares de pessoas? E pior, por que Deus permite que o traficante, o político corrupto, o mafioso viva uma vida regalada, feliz e próspera? Por que o mundo é caótico e tudo parece fora dos eixos?
Diante deste quadro, todos os personagens do livro de Jó vestem a toga teológica e começam um debate, numa tentativa de colocar Deus de volta na caixinha. A mulher de Jó é uma teóloga epistemologicamente empiricista e conclui: “Deus é injusto”; Os três amigos de Jó são teólogos racionalistas e concluem: “Jó, você está sendo punido por Deus!”; Eliú, o amigo mais novo e aparentemente o mais centrado, baseado numa epistemologia um tanto existencialista, conclui: “Ei, velharada, vocês estão errados. Jó sofre porque Deus quer ensinar algo a ele”.
Depois que todos os teólogos debateram, que o dispensacionalista brigou com o aliancista, que o calvinista “quebrou o pau” com o arminiano, que o reformado cutucou o evangélico, e todos os tipos de categorias foram expostas e defendidas, Deus decide entrar na parada. E a resposta da parte de Deus pode ser resumida com a seguinte frase: “Estou pouco me lixando para suas categorias teológicas”.
Sim! O discurso divino não chega nem perto de ser considerado uma resposta aos questionamentos e categorizações do teólogo Jó. Deus não se preocupa em prestar contas e dar satisfações de todos os pormenores de seu governo. A “não-reposta” de Deus às interrogações da mente de Jó deve ser lida assim: “Amigo, a maneira como me conduzo e governo o universo não é da sua conta”. Robert Alter emThe Art of Biblical Poetry (Basic Books) sugere de forma brilhante que ao invés de responder os questionamentos de Jó, Deus sarcasticamente o questiona acerca da sua habilidade em produzir relâmpagos, fazer o sol nascer, derramar a chuva, estabelecer os limites dos oceanos, etc.
Além disso, Deus não somente se revela soberano sobre a criação, mas também sobre o caos (uma clara figura teológica para a ausência do bem). O “Beemote” (Jó 40.15 בהמות) e o “Leviatã” (Jó 41.1 לויתן) são símbolos do caos na literatura bíblica e cananita (ver John Day, God’s conflict with the Dragon and the Sea). Assim, Deus revela seu governo sobre o mundo e sobre todas as forças que são contrárias a ordem criada e estabelecida.
Embora não seja da alçada de Jó compreender todas as operações da justiça divina, ele é convidado a confiar no Criador da ordem, no Senhor das forças cósmicas, naquele que tem poder para suprimir o caos que invadiu sua vida e restaurar a ordem natural dos eventos de sua experiência.
Portanto, não é papel do teólogo tentar categorizar o ser divino ao tentar forçá-lo dentro de uma caixinha teológica. Simplesmente, porque Deus se recusa entrar na caixa. Sua tarefa é nada mais do que o privilégio de vislumbrar a majestade do Criador e deixar ser vencido por seu poder e soberania.
Fonte: NAPEC

sábado, 3 de agosto de 2013

Um papa entre nós

Ageu Heringer Lisboa


Francisco I já voltou para Roma, depois de uma semana histórica no Brasil com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Sua presença aqui se liga ao seu primeiro gesto político civilizador, a ida ao porto italiano de Lampeduza, Itália, por onde tentam chegar, e ficam confinados, fugitivos de guerras e de fomes africanas. Lá, como cá, Francisco I condenou a indiferença global para com os pobres, sempre humilhados, e lhes deu acolhida fraterna, pastoral, prometendo-lhes o engajamento da igreja. Ai começou a dar forma concreta o que era a promessa de seu nome papal, Francisco, que nos remete ao santo reformador do séc XIII, herói dos pobres e enfermos e defensor dos animais, elos frágeis da criação.

Surpreendeu-nos a presença marcante e transparente de autenticidade humana, plena de novidades benignas do evangelho eterno que Bergoglio encarna com ternura. A Jornada da Juventude transcendeu idades e alcançou igualmente pessoas de todas gerações. O foco das mensagens foi centrada nos mais pobres, nos deficientes e nos sem-poder e nos afastados da igreja. 

Com o poder penetrante da poética, ele falou da esperança que chega por meio da juventude; juventude que deve valorizar e receber algo da sabedoria dos idosos. Foi cuidadoso no contato com políticos, cumprindo com eles compromissos protocolares indispensáveis. Bem humorado, capaz de gestos espontâneos, vivamente pessoal, tão diferente dos pomposos, distantes, narcisistas e frios personagens religiosos, acadêmicos ou políticos amantes de si mesmos. Moradores de favelas, enfermos, deficientes, crianças, dependentes químicos receberam seu carinho, orações, bênçãos e encorajamento pastoral.

Quando falou da vocação da igreja em levar as Boas Novas para as periferias existenciais, não negou a dimensão geográfica, sociológica e econômica da organização social que precisa incluir a todos e todas, mas incluiu e valorizou igualmente a dimensão subjetiva, a interioridade, a vida anímica. Pois o evangelho de Cristo é doador de sentido e esperança à vida.

Veio no espírito de Elias e de João Batista, contestando podres poderes políticos e religiosos, falando com autoridade espiritual. Seus gestos e falas animam-nos a memória das firmes palavras proféticas de Maria em seu cântico do anuncio do Salvador. Tem algo do carisma do papa que veio da sofrida Polônia, João Paulo II, e parece que mais determinado ou bem posicionado que aquele para promover as indispensáveis reformas na bimilenar igreja, o que incomoda os corruptos burocratas da Cúria Romana. 

Na sua primeira entrevista a um jornalista, o brasileiro Camarotti, não se esquivou de responder, sem nenhum script, sobre assuntos incômodos e que causaram perplexidade e condenação de todo o mundo e vergonha à Igreja, admitindo que a igreja pecou, que sacerdotes pecaram gravemente e que já estão sendo disciplinados. A igreja romana se arrepende e irá levar à sério a santidade, a justiça e a ética. 
Em pleno voo, o papa conversou com diversos jornalistas, surpreendendo a todos pela clareza, franqueza e amorosidade ao ser confrontado com perguntas espinhosas. “Quem sou eu para julgar alguém”? Na mais polêmica questão, aclarou de pronto a diferença entre a pessoa gay, que deve ser acolhida e integrada na igreja, sem julgamento condenatório, e o lobby. Tal postura do papa é um convite, agora indesculpável, para que outras confissões cristãs também reconheçam o quanto de nefasto, corruptível, antibíblico e diabólico mesmo ocorre em seu próprio meio, deixando a postura farisaica de só ver defeito nos campos alheios.

A JMJ aconteceu enquanto as fogueiras dos protestos de milhões nas ruas brasileiras entravam num recesso, mas não suas causas. Os detentores dos três poderes, sempre blindados e alienados da nação, ganharam um intervalo para reflexão. Quem sabe ganharão juízo e, no precedente aberto pelo papa, façam corajosa autocrítica, saiam da projeção defensiva, punam os criminosos de seus partidos e entidades de classe, cumpram as leis e vereditos da justiça e renunciem aos injustos privilégios legais? Pois se não o fizerem, o “gigante” que descobriu sua força poderá se agitar novamente, e de modo imprevisível.

Das maiores mobilizações de protesto ocorridas na história brasileira bem como das pacíficas expressões da JMJ vieram demandas reprimidas por justiça e ética que exigem mudanças na agenda governamental e da cultura brasileira. Com certeza, fomos atingidos até mesmo em nosso extrato inconsciente coletivo. O que exige urgentes modificações na concepção do bem público, na determinação das prioridades nacionais, e na operação da política; ou a boa semente será morta pela rotina sistêmica, pelo entretenimento midiático alienante, imoral e consumista?

Os peregrinos deram uma impressionante demonstração de civilidade, autodomínio e protagonismo construtivo. Nada quebraram em suas caminhadas, mesmo sofrendo um deslocamento imprevisto de 50 km devido ao lamaçal no Campo da Fé na zona oeste da cidade. Conquistaram o respeito da população, foram solidários, limpos de drogas e palavrões. Não revidaram algumas dezenas de provocadores que num ponto da praia pisaram, quebraram e profanaram crucifixos enquanto outros os agrediam moralmente com simulação sexual. Afetuosos, em várias línguas desconstruíram o mito de que religião e juventude são coisas antagônicas ou que espiritualidade seja fruto de repressão religiosa, inimiga da alegria e da consciência política. 

Quando poderia ser conseguido quatro, cinco minutos de profundo silêncio de quatro milhões de pessoas aglomeradas numa praia, para introspecção, confissão e oração? Multidão que acampou por mais de 24 horas em dias gelados e chuvosos, com disciplina, sem vandalismos? Um milagre? Acaso? Lavagem cerebral? Basta imaginar se outro fosse o motivo do ajuntamento! Foi uma amostra do fruto do Espírito de Cristo e de que, de fato, outro mundo é possível, o Reino de Amor segundo Cristo.

O papa foi embora. Que se mantenha disponível para abraçar a gente das ruas, praias, favelas, universidades e fábricas de outros continentes. Com certeza, milhões de jovens em todo o mundo, não apenas os católicos, retomarão a fé cristã com renovado entusiasmo. É sempre previsível que pessoas de outras confissões cristãs reajam com reserva. Alguns com ceticismo, desdém e até feroz criticismo ao que correu nestes dias. Levantando antigas disputas hermenêuticas, apontando a super ênfase católica em Maria que quase ofusca Jesus.

A oração de Jesus pela unidade dos que creem é mandamento permanente, como também é constante a tendência sectária na religião, como na política e na academia. Fico feliz por constatar muitas manifestações de interesse e simpatia de evangélicos comuns e de pastores às palavras do papa. O mundo tão carente de lideranças confiáveis, éticas, visionárias e mobilizadoras as agradece. Não é cooptação religiosa ou fascínio por figura carismática. É que aprendemos que podemos ser cobeligerantes em muitas causas e identificados no amor de Cristo que integrou zelotes, essênios, fariseus e gente de fora destes grupos em seu círculo. Lembro-me do salmo “Companheiro sou dos que amam ao Senhor e à sua Palavra” (Sl 119.63).

Que a JMJ não fique apenas como memorável evento magnífico, espetáculo de fraternidade e terapia coletiva. Oro para que os corações lá despertados continuem animados, santificados e fortalecidos através da intimidade com os textos bíblicos. Como o poeta Wolô registrou numa canção, “Cristo chama, não apague!”.

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Ageu Heringer Lisboa é psicólogo e autor de Sexo: Espiritualidade, Instinto e Cultura. Membro fundador do Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC) e da Associação Internacional de Assessoramento e Pastoral Familiar (EIRENE) no Brasil.

Fonte:http://www.ultimato.com.br/conteudo/um-papa-entre-nos