segunda-feira, 12 de agosto de 2013

O Deus que Se recusa entrar na caixa


                                                                                                          Por Isque Sicsú

Existe uma expressão muito conhecida, especialmente entre os teólogos, que diz:  “É impossível colocar Deus numa caixinha”. Com essa expressão, queremos dizer que Deus está tão além da compreensão humana, que é impossível propor uma definição que consiga exaurir todo o ser divino.
O problema é que na prática as coisas não funcionam de forma tão simples assim. Depois de passar anos debruçado sobre livros, respirando todos os ácaros das bibliotecas, dissecando as Escrituras nas línguas originais, e aprendendo todos os tipos de categorias teológicas, o teólogo começa achar que Deus é como aquela namorada que conhecemos muito bem. E por isso, ele conclui que pode definir com toda segurança a essência divina. Ele passa a crer que é um especialista em Deus, e que é capaz de explorar e definir a pessoa e o modus operandi divino. Entretanto, este indivíduo “cai do cavalo” quando Deus aparentemente contradiz o seu bairrismo teológico. Ele fica sem respostas quando seus credos não mais explicam, suas categorias não mais comportam e suas definições não mais resumem.
Jó, o personagem bíblico, e seus amigos teólogos sofrem desse mal. São indivíduos que diante de uma aparente incoerência divina, debatem, replicam, treplicam, mas o fato é que suas categorias teológicas não conseguem explicar o que está acontecendo na prática. Observemos com mais cuidado.
O livro de Jó nos apresenta um cenário em que tudo faz sentido, onde todas as categorias teológicas funcionam bem direitinho. Jó, um homem piedoso, justo e temente a Deus, goza abundância, prosperidade e felicidade. Do ponto de vista teológico, tudo bem! Afinal de contas, nada mais normal do que ver Deus abençoando um homem justo e piedoso.
Agora, o castelinho de cartas das categorias teológicas simplesmente desmorona, quando Deus decide sair da caixinha e permitir que as maiores atrocidades aconteçam na vida de um homem justo e piedoso. De repente, Jó perde a fortuna, filhos e a saúde. E agora, José? Como explicar um quadro como esse? Se Deus é bom, soberano e justo, por que ele permite tamanho mal? Por que existem crianças morrendo de fome na África? Por que pessoas piedosas morrem nas filas dos hospitais do SUS? Por que tsunamis e terremotos varrem países matando milhares de pessoas? E pior, por que Deus permite que o traficante, o político corrupto, o mafioso viva uma vida regalada, feliz e próspera? Por que o mundo é caótico e tudo parece fora dos eixos?
Diante deste quadro, todos os personagens do livro de Jó vestem a toga teológica e começam um debate, numa tentativa de colocar Deus de volta na caixinha. A mulher de Jó é uma teóloga epistemologicamente empiricista e conclui: “Deus é injusto”; Os três amigos de Jó são teólogos racionalistas e concluem: “Jó, você está sendo punido por Deus!”; Eliú, o amigo mais novo e aparentemente o mais centrado, baseado numa epistemologia um tanto existencialista, conclui: “Ei, velharada, vocês estão errados. Jó sofre porque Deus quer ensinar algo a ele”.
Depois que todos os teólogos debateram, que o dispensacionalista brigou com o aliancista, que o calvinista “quebrou o pau” com o arminiano, que o reformado cutucou o evangélico, e todos os tipos de categorias foram expostas e defendidas, Deus decide entrar na parada. E a resposta da parte de Deus pode ser resumida com a seguinte frase: “Estou pouco me lixando para suas categorias teológicas”.
Sim! O discurso divino não chega nem perto de ser considerado uma resposta aos questionamentos e categorizações do teólogo Jó. Deus não se preocupa em prestar contas e dar satisfações de todos os pormenores de seu governo. A “não-reposta” de Deus às interrogações da mente de Jó deve ser lida assim: “Amigo, a maneira como me conduzo e governo o universo não é da sua conta”. Robert Alter emThe Art of Biblical Poetry (Basic Books) sugere de forma brilhante que ao invés de responder os questionamentos de Jó, Deus sarcasticamente o questiona acerca da sua habilidade em produzir relâmpagos, fazer o sol nascer, derramar a chuva, estabelecer os limites dos oceanos, etc.
Além disso, Deus não somente se revela soberano sobre a criação, mas também sobre o caos (uma clara figura teológica para a ausência do bem). O “Beemote” (Jó 40.15 בהמות) e o “Leviatã” (Jó 41.1 לויתן) são símbolos do caos na literatura bíblica e cananita (ver John Day, God’s conflict with the Dragon and the Sea). Assim, Deus revela seu governo sobre o mundo e sobre todas as forças que são contrárias a ordem criada e estabelecida.
Embora não seja da alçada de Jó compreender todas as operações da justiça divina, ele é convidado a confiar no Criador da ordem, no Senhor das forças cósmicas, naquele que tem poder para suprimir o caos que invadiu sua vida e restaurar a ordem natural dos eventos de sua experiência.
Portanto, não é papel do teólogo tentar categorizar o ser divino ao tentar forçá-lo dentro de uma caixinha teológica. Simplesmente, porque Deus se recusa entrar na caixa. Sua tarefa é nada mais do que o privilégio de vislumbrar a majestade do Criador e deixar ser vencido por seu poder e soberania.
Fonte: NAPEC

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