quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Entre o medo e a fé



Por Ricardo Wesley Morais Borges


“Devo minha vida a Cristo e ao evangelho. Minha maneira de expressar minha gratidão é testemunhar a minha fé por meio da representação de cenas bíblicas”.

Essas são as palavras de quem possivelmente foi o artista cristão mais importante do Japão, Sadao Watanabe (1913-1996) convertido do budismo ao cristianismo aos 17 anos de idade. Através de seu interesse em preservar a tradicional arte popular japonesa, suas obras são um belo testemunho de sua fé, agora expostas em museus importantes ao redor do mundo. Antes da fama, porém, que só veio após a sua morte, sua paixão era fazer de tudo para que alguns, em especial a gente de sua própria terra e cultura, pudessem chegar de alguma maneira à fé e à salvação.

Uma cena que ele pintou várias vezes é a representação de Cristo no barco com seus discípulos, em meio à tempestade1. Nessa narrativa, depois de muito ensinar em parábolas e cansados ao final do dia, Jesus e os discípulos decidem subir a um barco em direção ao outro lado do lago, no mar da Galileia.

Quatro deles eram pescadores, sendo que Tiago e João eram experientes em manejar barcos nesse lago. Jesus, cansado, dorme no que parece ser o assento do capitão. Então uma terrível tempestade lhes alcança. Ventos fortes, ondas altas, água no barco. Tudo indica que primeiro eles tentam resolver a situação com suas próprias forças e recursos.

Junto a esse esforço, também a aflição: Por que Jesus está ‘ausente’? Por que ele não controla a situação? Por que está em silêncio? Por que dorme? Ele não se importa que morramos? Medo da morte, mas talvez um medo ainda mais profundo de que Jesus não se importasse ou não se interessasse por eles.

Em seguida Jesus demonstra poder sobre as forças da natureza. Ele não tira a água do barco nem busca acalmá-los. Ele atua – na visão dos discípulos – aparentemente tarde, para mudar a situação. Logo vem sua dura pergunta: ‘Por que têm medo? Ainda não têm fé?’.

Uma observação: o oposto da fé aqui não é a dúvida, mas o medo. Claro que a dúvida e o medo muitas vezes estão conectados. Mas a dúvida usualmente é mais racional, demanda uma evidência, uma prova. O medo por vezes é irracional, nem se explica. O medo também costuma nos paralisar, nos impede de conseguir ver com clareza, engessa e dificulta que nos movamos em direção à saída de qualquer situação.

Aqui Jesus os confrontou por causa de seu medo. Curiosamente, eles continuaram com o mesmo sentimento, mas agora com medo (ou, na melhor das hipóteses, um temor reverente) de Jesus. A passagem termina com um fascinante ‘que homem é este?’. Para responder a essa pergunta, talvez seja importante examinar os relatos que aparecem na seção imediatamente anterior: em como ouvimos ou percebemos a Jesus.

Vemos que Jesus diz muitas coisas antes do episódio do barco na tormenta. Ele usava parábolas para ensinar, enfatizando o “escutem!”2 e também repetia que “se vocês têm ouvidos para ouvir, então ouçam”3. Quando a multidão foi embora, as pessoas que ficaram ali começaram, junto com os doze discípulos, a lhe fazer perguntas sobre as parábolas. Foi quando Jesus revelou que a atitude curiosa e instigadora de seguir perguntando estava relacionada com o entendimento das verdades do Reino4. Concluiu que somos responsáveis com tudo o que ouvimos e recebemos de Deus5.

Ouvir e entendimento só vem com interesse, com compromisso, através do relacionar-se e do confiar naquele que nos fala. Lesslie Newbigin já nos recordava como isso é essencial à nossa fé: receber com confiança aquilo que nos é dado com autoridade. Somente os interessados, os que buscam, apenas esses que entram em uma relação pessoal com o Senhor, de busca, de interesse em suas palavras, no que ele tem para nos dizer, e dispostos a colocar isso em prática (a lamparina que cumpre o seu uso, o seu propósito), são esses os que entenderão, que melhor captarão as verdades do Reino.

Parece que faltou aos discípulos no barco entender e relacionar-se com o que fala mas parece estar em silêncio, como nas muitas ilustrações do Cristo Pantocrator, talvez a mais antiga representação de Cristo na história da igreja cristã, o soberano e severo, com uma mão estendida para abençoar e com a Palavra na outra. Algo tão especial e profundo que merece outra reflexão em momento oportuno.

Por agora, no meio das tormentas de nosso próprio tempo, quando às vezes parece que Jesus está dormindo, em silêncio, ou quando inclusive parece não se importar, me impacta esse desafio que é a pergunta sobre como crescemos e amadurecemos em nossa fé.

Volto então a Sadao Watanabe, com seu desejo de testemunhar de sua fé através da arte, e me pergunto como daremos testemunho de nossa fé em Cristo hoje, em meio a qualquer tempestade. Algumas pistas que encontro são as de:

- Valorizar e trazer para a nossa vida diária o que ele já nos falou em sua Palavra.

- Reconhecer que ele não está calado, pois já se revelou.

- Estar dispostos a escutar, o que também significa obedecer.

- Confiar naquele que é todo-poderoso, que a tudo rege na história.

- Descobrir e relacionar-me com Jesus na Sua Palavra revelada e já entregue à nós.

Só assim sairemos do medo para a fé, da fé para a vida.

1. Marcos 4:35-41
2. Marcos 4:2-3a
3. Marcos 4:9
4. Marcos 4:10-12, 33-34.
5. Marcos 4:21-25


Ricardo Wesley Morais Borges: É casado com Ruth e pai de Ana Júlia e Carolina. Integra o corpo pastoral da Igreja Metodista Livre da Saúde, em São Paulo (SP), e serve como secretário regional associado para a América Latina da Comunidade Internacional de Estudantes Evangélicos (CIEE-IFES)


Fonte: http://www.ultimato.com.br/conteudo/entre-o-medo-e-a-fe

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